Da praia à obra: sargaço vira matéria‑prima com ganhos ambientais e desafios para escalar
Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), desenvolvem rotas tecnológicas para transformar o sargaço — biomassa que hoje se acumula em praias do Caribe e do norte do Brasil — em insumo para a construção civil. Estudos publicados em revistas científicas internacionais, segundo os próprios grupos, apontam reduções de impacto e desempenho técnico que tornam a alternativa atraente, mas a transição para produtos comerciais enfrenta entraves logísticos, sanitários e de certificação.
O processo pesquisado reúne etapas claras: coleta nas praias, lavagem para remover sais e areia, secagem controlada e tratamento térmico, que pode ser feito em fornos convencionais ou por aquecimento por micro‑ondas. Nesta última rota, dizem os pesquisadores, o uso do forno de micro‑ondas é crucial porque sela poros formados pela decomposição da matéria orgânica, preservando a leveza enquanto aumenta a resistência do material — explicação atribuída a Cristiane Bueno, da UFSCar.
Com a matéria‑prima tratada, o sargaço foi testado em diferentes produtos: agregados leves (incorporado na massa de argila), painéis de partículas e telhas de fibrocimento. Os resultados técnicos divulgados pelos grupos incluem redução de densidade em até 30% para agregados com 20% a 40% de sargaço, substituição de 100% do calcário em formulações de telhas de fibrocimento (com ganho extra de resistência à corrosão) e atendimento a padrões internacionais de painéis quando os compósitos combinam 30% de fibras de sargaço na camada interna com bagaço de cana nas externas.
Do ponto de vista ambiental, os estudos citados pelos pesquisadores indicam ganhos expressivos: até 47% de redução nas emissões de CO₂ em comparação com processos convencionais, além de economia de recursos naturais e diminuição dos prejuízos associados ao acúmulo de sargaço nas praias. Os autores destacam também que a fabricação de painéis próxima às áreas de coleta pode apresentar menor impacto ambiental do que painéis à base de madeira de eucalipto, segundo os dados do próprio projeto.
Os benefícios justificam o interesse: no litoral do Pará, por exemplo, equipes retiraram 40 mil toneladas de biomassa em 2025, conforme relato dos pesquisadores, o que evidencia tanto a disponibilidade pontual de matéria‑prima quanto a necessidade de soluções para o problema ambiental e econômico gerado pelas arribadas.
Mas a cadeia para transformar essa oportunidade em escala comercial tem obstáculos relevantes. O primeiro é a sazonalidade: o sargaço chega em grandes volumes durante eventos episódicos e precisa ser coletado e processado rapidamente para evitar decomposição, que reduz qualidade e potencialmente libera gases tóxicos. A degradação do material nas praias é associada à emissão de sulfeto de hidrogênio, amônia e metano, com impactos na qualidade do ar e no ambiente marinho, além de queda no oxigênio dissolvido e aumento da acidificação.
Outro risco apontado pelos pesquisadores é a contaminação por metais tóxicos, em especial o arsênio, já registrado em concentrações elevadas em amostras de sargaço. Esse fator impõe cuidados adicionais: monitoramento sistemático das cargas coletadas, protocolos de pré‑tratamento e requisitos analíticos que as empresas terão de cumprir para obter certificações técnicas e ambientais.
Do ponto de vista tecnológico e industrial, há um gargalo claro: a tecnologia de aquecimento por micro‑ondas, que se mostrou promissora nos ensaios ao selar poros e melhorar propriedades mecânicas, ainda é pouco difundida na indústria cerâmica e de compósitos. Escalonar fornos de micro‑ondas para volumes industriais exige investimentos e adaptação de linhas de produção. Alternativas em estudo incluem fornos convencionais e pré‑tratamentos químicos para melhorar a aderência das fibras às matrizes inorgânicas.
Os grupos de pesquisa também exploram soluções para a logística: parcerias com comunidades costeiras para coleta local, integração de cadeias de valor com bagaço de cana e indústrias locais, e desenvolvimento de novos produtos — argamassas especiais, blocos de terra compactada e cerâmicas estruturais — que possam absorver a oferta sazonal. A meta divulgada pelos pesquisadores é ter pelo menos dois produtos comerciais no mercado até 2026, um horizonte ambicioso que dependerá de avanços nos pontos citados.
Em suma, as investigações da USP e da UFSCar, financiadas pela FAPESP, mostram que o sargaço pode deixar de ser apenas um passivo costeiro e ganhar valor como matéria‑prima circular para a construção civil. Os ganhos ambientais e os resultados técnicos já demonstrados são promissores, mas a viabilidade comercial exigirá soluções para a sazonalidade e logística de coleta, mecanismos para mitigar riscos de contaminação por metais e escalonamento das tecnologias — em especial a aplicação industrial de micro‑ondas — além de processos de certificação que garantam segurança e desempenho dos novos produtos.
Fontes citadas neste texto: pesquisas e entrevistas conduzidas por pesquisadores da USP e da UFSCar, com financiamento da FAPESP, conforme reportagem do Terra da Gente (g1).